Além dos Livros

"Iam para o destino, que os chamara de tão longe"

Publicado em 1930, O Quinze é um divisor de águas da chamada “literatura da seca”, ou seja, livros ambientados durante períodos de secura cujas sagas são intrinsicamente relacionadas às consequências do clima árido, tanto no âmbito social quanto no âmbito psicológico e até mesmo político.

A grande justificativa para o romance de estreia de Rachel de Queiroz ocupar uma posição tão significativa entre os romances regionalistas brasileiros é que ele quebra, de forma bastante contundente, o vício literário de se retratar a seca – especialmente nordestina – de maneira exageradamente romantizada, como acontecia até então. Mário de Andrade, inclusive, escrevendo sobre O Quinze, disse que o livro aborda o tema de uma forma humana, mostrando “uma seca de verdade, sem exagero, sem sonoridade, uma seca seca, pura, detestável, medonha”. De fato, Rachel não ensina ao leitor o que ele deve sentir, não floreia suas palavras de modo a idolatrar o sofrimento humano; pelo contrário, mostra-o da forma como ele o é: detestável, angustiante, amargo como sangue. E então, diante de verdadeiro retrato do quadro da aridez, cabe ao leitor se apequenar diante da força da natureza como lhe convém e sentir a aspereza do ambiente e o tormento das personagens como se ali estivesse.

“Recordando a labuta do dia, o que o dominava agora era uma infinita preguiça da vida, da eterna luta com o sol, com a fome, com a natureza.” (p. 51) 

Lançado quando Rachel tinha seus vinte anos (e escrito quando ela ainda tinha seus dezenove), O Quinze faz referência à grande seca de 1915, que deixou marcas severas no estado do Ceará. Apesar da pouca idade na época, Rachel se embasou especialmente em relatos de conterrâneos sobre as consequências do episódio para desenvolver seu romance. Como filha da terra sobre a qual escrevia, imprimiu em sua obra a linguagem simples e os costumes do sertão, mas sem exageros, sem reservar de forma exclusiva aos mais pobres o vocabulário da roça e aos mais ricos o linguajar culto. Aqui não há dissonância social entre uma e outra classe, mas como cada uma reage – diante do que pode – ao fantasma desolador da seca.

O livro se divide em três núcleos. Primeiramente, somos apresentados à Conceição, moça que, no alto de seus vinte e poucos anos, é professora na cidade e costuma passar as férias na fazenda da avó Inácia, na região do Quixadá. Solteira, sem pretensões de casamento e filhos, Conceição é uma protagonista diferente do que se via na época: solitária, independente, apegada à literatura e questionadora. Devido a isso, há quase um abismo intelectual entre ela e Vicente, por quem é, de certa forma, apaixonada.

É Vicente quem protagoniza o segundo núcleo do romance. Moço de aspecto mais rude, ele lida com a fazenda de sua família, especialmente com o gado, que agora, em tempos de seca, pena até mesmo para se manter de pé. Apesar de parecer um tanto bronco, Vicente é, na verdade, bastante generoso, e sua generosidade não se resume apenas ao ser humano; ela se estende a seus animais. Nesse ponto é que Rachel iguala o embate entre o homem e a natureza, talvez a grande temática do livro, porque, ao mesmo tempo em que a natureza faz sofrer, também ela sofre.

Esses dois núcleos são compostos por personagens de classe social mais abastada, totalmente diferentes do terceiro núcleo, que é protagonizado pelo vaqueiro Chico Bento, empregado de Dona Maroca, que dispensa seus funcionários após dar ordem de soltar o gado para morrer, diante da crueldade da seca e completa falta de recursos. Juntamente com sua família, Chico Bento toma a decisão de se retirar da terra e partir em busca de um lugar melhor, decisão que lhe trará consequências impiedosas, a começar pela incessante fome durante todo o percurso, passando pela morte comovente de um de seus filhos e pela perda de sua dignidade.

“Iam para o destino, que os chamara de tão longe, das terras secas e fulvas do Quixadá, e os trouxera entre a fome e mortes, e angústias infinitas, para os conduzir agora, por cima da água do mar, às terras longínquas onde sempre há farinha e sempre há inverno…” (p. 121) 

O Quinze, de Rachel de Queiroz (Eduardo Tognon)
Imagem: Eduardo Tognon

Convencida pela neta Conceição, Dona Inácia sai de sua fazenda e parte para a cidade, onde as duas passam a viver até que a saga de Chico Bento cruze os caminhos da moça. É na cidade que Conceição encontra o que resta da família do vaqueiro, precisamente em um campo de retirantes (chamado, na época, de campo de concentração), visto que ela costumava ajudar no precário socorro que o poder público dava aos retirantes recém-chegados do sertão à capital. É na cidade também que ela recebe a visita de Vicente e rumina incessantemente suas ideias a respeito do rapaz, precisamente sobre um improvável romance entre a mocinha literata e o sertanejo.

Usando uma prosa despretensiosa, mas bastante comovente, Rachel de Queiroz nos apresenta uma história que, acima de tudo, tem a intenção de mostrar os efeitos da seca nos campos social e psicológico. O Quinze deixa à vista a forma como cada classe social lida com as consequências assoladoras do episódio: enquanto Vicente consegue, ainda de forma sôfrega, lidar com a desolação de seus animais, e Conceição e a avó conseguem se refugiar na cidade, a família de Chico Bento é esmagada pela dor pungente da fome e pelas consequências psicológicas irreparáveis da miséria. O romance também é envolvido por denúncias sociais, quando relata o apadrinhamento político que levou Chico Bento e sua família a fazerem sua retirada a pé devido aos bilhetes de trens para a capital já estarem todos “vendidos”.

Quanto a sua estrutura e linguagem, a obra é, na medida certa, um verdadeiro romance regionalista, sincero e constante no que a autora propõe retratar, tanto pela perspectiva coletiva do tema quanto pela perspectiva inerente a cada personagem. Ainda que silenciosa, Rachel nos faz ouvir os sons da seca, nos faz sentir o silêncio da noite rodeando o quarto de Conceição, nos faz ver as cores tristes do gramado ressequido, nos faz sentir a vigília da morte iminente.

Apesar de não ser uma história necessariamente aguçadora e de grandes acontecimentos, O Quinze é um retrato explícito, cruel e emocionante das limitações do homem diante da natureza, mas também da consciência, compaixão e complexidade humanas diante dos mais inevitáveis quadros de sofrimento. Costumo dizer que a seca, neste livro, é uma personagem à parte, onipotente e onipresente, desafiadora e impiedosa, mas solitária em sua saga.

“Novamente a cavalo no pedrês, Vicente marchava através da estrada vermelha e pedregosa, orlada pela galharia negra da caatinga morta. Os cascos do animal pareciam tirar fogo nos seixos do caminho. Lagartixas davam carreirinhas intermitentes por cima das folhas secas no chão que estalavam como papel queimado. 

O céu, transparente que doía, vibrava, tremendo feito uma gaze repuxada. 

Vicente sentia por toda parte uma impressão ressequida de calor e aspereza. 

Verde, na monotonia cinzenta da paisagem, só algum juazeiro ainda escapo à devastação da rama; mas em geral as pobres árvores apareciam lamentáveis, mostrando os cotos dos galhos como membros amputados e a casca toda raspada em grandes zonas brancas. 

E o chão, que em outro tempo a sombra cobria, era uma confusão desolada de galhos secos, cuja agressividade ainda mais se acentuava pelos espinhos.” (pp. 23-24) 

Edição usada para este artigo

O Quinze 

Rachel de Queiroz 

ISBN: 978-8503012928 (versão impressa) 

Editora: José Olympio 

Publicação: 2020 (esta edição) / 1930 (original) 

208 páginas

O Quinze 

Rachel de Queiroz 

ISBN: 978-8503012928 (versão impressa) 

Editora: José Olympio 

Publicação: 2020 (esta edição) / 1930 (original) 

208 páginas

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Eduardo Tognon

Eduardo Tognon

Eduardo Tognon é professor da área de tecnologia, diagramador, um pouco escritor e muito leitor. Adora tecnologia e literatura, e faz com que as duas coisas andem juntas.

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