Além dos Livros

Um pequeno trecho mal contextualizado pode arruinar uma história inteira

Leia com atenção o trecho a seguir: 

Por volta das dez da noite, quando já se encontrava sozinho em casa, Manuel abandonou o punhado de livros que mantinha em uma escrivaninha em seu quarto e saiu em direção ao misterioso quarto dos fundos. Finalmente havia chegado o momento de checar o que havia naquela estranha mala que Dona Domingas havia deixado para trás. 

O couro desgastado dava a impressão de que o objeto tinha pelo menos uns cinquenta anos, da época em que Dona Domingas ainda morava com o ex-marido em um sítio no Tocantins, próximo de Palmas. De lá para cá muita coisa havia acontecido, mas, de acordo com rumores, o tal do ex-marido ainda perambulava por todos os cantos do país, assumindo identidades diferentes para fugir da polícia. A mãe de Manuel contara que Dona Domingas havia escondido todo o dinheiro que o ex-marido havia saqueado de um banco em São Paulo naquela bendita mala. Era quase impossível acreditar. Quinhentos mil reais numa maletinha daquelas? Certamente havia muito menos. Independentemente da quantia, o episódio ficou conhecido como “O Assalto da Mala de 79”. Foi depois disso que os dois passaram a viver se escondendo. E foi numa dessas aventuras que o ladrão quebrou o braço direito. “Coincidência demais Seu Epaminondas ter problemas motores no braço direito, não é?”, pensou. 

Manuel abriu vagarosamente o zíper da mala. Um amontoado de papéis amarelados saltou à vista. Aparentemente, tudo não passava de documentos velhos, sem importância alguma, até que ele notou, bem no canto, e bem no fundo, uma pequena pedra alaranjada. Foi nesse momento que ouviu uma porta a ranger do lado de fora. 

Há dois erros fatais no trecho que você acabou de ler. Consegue descobri-los? Já adianto que não são erros ortográficos ou gramaticais. 

Uma das principais preocupações que um autor precisa ter é com a coerência de seu texto, e dentro dessa esfera existe o que podemos resumir como contexto. O contexto nada mais é que o conjunto de elementos que estão ligados aos fatos principais e/ou servem de ambientação ou justificativa para esses fatos. No exemplo acima (que não foi retirado de nenhum livro, apenas criado propositalmente para este artigo), os dois erros são contextuais. 

A não ser que o texto esteja escrito no futuro, não há como Dona Domingas ter morado com o ex-marido em um sítio próximo de Palmas, no Tocantins, há cerca de cinquenta anos. Ainda que o nome Tocantins tenha sido usado há mais tempo, o Estado do Tocantins só surgiu oficialmente no Brasil em 1988, e a criação de Palmas, sua capital, só se deu a partir do ano seguinte.

Outro fato impossível refere-se ao tal Assalto da Mala de 79. Presumimos que, devido ao nome do episódio, o roubo ao banco tenha sido efetivado em 1979. O ex-marido de Dona Domingas teria roubado quinhentos mil reais de uma agência bancária em São Paulo. Todavia, vale lembrar que o real, nossa moeda corrente, só surgiu oficialmente em 1994. 

Esse tipo de erro, ainda que possa passar despercebido por alguns leitores, tende a descredibilizar um pouco o autor. A não ser que, propositalmente, seu texto tenha uma tendência surreal ou distópica, erros de contexto mostram que o autor não teve cuidado ao elaborar uma história de ficção ambientada no passado tendo a realidade como pano de fundo. E isso é frustrante aos olhos do leitor, porque o enredo deixa, consequentemente, de fazer sentido.

A importância do contexto
Créditos: Way Home Studio

Há muitos elementos que você deve observar ao ambientar sua história. Aqui vão alguns pequenos exemplos que já encontrei em alguns livros por aí: 

  • cidades, estados ou países que não existiam até então; 
  • moeda corrente ainda não inventada; 
  • estações do ano invertidas (quando o enredo se passa em um hemisfério diferente); 
  • datas consideradas comemorativas em alguns lugares, mas não em outros; 
  • anos letivos incongruentes, já que nem todos os países iniciam seus anos letivos na mesma época; 
  • obras lidas por seus personagens, mas que, na época, estavam censuradas; 
  • encontros com personalidades reais que não se encontravam no país de residência no momento em que a história se passa; 
  • correntes religiosas que ainda não existiam; 
  • teorias científicas ainda não conhecidas; 
  • invenções ainda não inventadas; 
  • vestimentas não propícias ao período; 
  • tratamentos médicos ou remédios ainda não desenvolvidos; 
  • grafia das palavras (em especial nomes de estabelecimentos) em desacordo com as normas ortográficas vigentes na época.

A época em que este artigo foi escrito (final de 2020, momento da pandemia de COVID-19) mostra, em termos reais, o quão importante é prestar atenção ao pano de fundo de um enredo. Esse momento teve consequências em escalas globais, alterando comportamentos em praticamente todo lugar, afetando a vida de praticamente todas as pessoas, sob incontáveis aspectos. Ao escrever sobre essa época no futuro, ignorar tudo isso no momento de contar uma história é quase um pedido de descrédito. 

Naturalmente, não há necessidade de se fazer uma pesquisa exaustiva para escrever um livro que se passa em uma época não contemporânea à sua, mas é importante atentar-se ao fato de que a ambientação e o contexto histórico precisam ser respeitados. 

Uma dica é ler livros cujo enredo se passa no período que você deseja retratar. Filmes, séries e programas de TV (especialmente de cunho jornalístico ou documental) são também ótimas opções. Além disso, assim que finalizar sua história, peça a opinião de pessoas diferentes. Pode ser que elas notem alguma incongruência contextual que passou despercebida por você. 😉

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Eduardo Tognon

Eduardo Tognon

Eduardo Tognon é professor da área de tecnologia, diagramador, um pouco escritor e muito leitor. Adora tecnologia e literatura, e faz com que as duas coisas andem juntas.

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