Além dos Livros

"Caminhamos porque somos obrigados a caminhar"

O que torna uma obra singular não é apenas a história que ela abrange, mas, acima de tudo, a maestria com que é descrita e esmiuçada. Steinbeck não considerava As Vinhas da Ira um grande livro, mas, quanto a isso, fosse por autocrítica ou modéstia, ele estava completamente errado.

Em meio às consequências econômicas da Grande Depressão e também do devastador cenário agrícola da época, a família Joad é obrigada a abandonar os campos de Oklahoma e partir rumo à Califórnia. A ascensão das máquinas agrícolas, as dívidas de grandes fazendeiros, o domínio bancário sobre as propriedades, a crise que devastava o país e a crescente disparidade de classes fizeram com que milhares de famílias como essa abandonassem suas terras em busca de um novo rumo, de trabalho, de sustento, condicionando suas vidas a um destino ainda incerto, a uma terra onde a promessa de uma vida melhor era quase o esboço do paraíso. O que fazer? Esperar pela fome, pela desgraça iminente, em meio a terras devastadas, cobertas de poeira, desalento e morte, ou arriscar-se em uma viagem longa e cansativa não para viver, mas para sobreviver?

“E os meeiros iam embora, mãos nos bolsos, chapéus puxados sobre os olhos. Alguns compravam aguardente e sorviam-na com sofreguidão, para resistir com ânimo ao golpe. E eles não riam, não se alegravam. Não cantavam, nem tocavam viola. Eles vinham voltando aos seus sítios, mãos nos bolsos, cabeça baixa, botinas rangendo raivosamente na poeira das estradas.” (p. 107) 

É nesse panorama que somos apresentados a Tom Joad, que ganha sua liberdade condicional por bom comportamento depois de ter sido preso por homicídio em legítima defesa. Livre, ruma então às terras da família, não sem antes encontrar, nesse percurso, o ex-reverendo Tim Casy, antigo conhecido da família, que agora, desacreditado em sua fé, tenta encontrar algum sentido na vida.

Ao chegar às terras da família, ambos são informados de que os Joad haviam abandonado sua casa e preparavam-se, agora na casa de tio John, para uma grande viagem rumo a terras californianas. Incitados pela incessante propaganda de trabalho em abundância na costa oeste, e diante da falta de qualquer outra alternativa, a família – composta por Tom, seus cinco irmãos (incluindo Rosa de Sharon, grávida), seu cunhado, seu pai, sua mãe, seu tio, seu avô e sua avó – junta suas poucas economias e compra um velho caminhão, em cima do qual também se juntam o reverendo Casy, convidado a seguir viagem com os Joad, um dos cachorros da família e os poucos pertences e a parca comida que lhe restavam.

Em As Vinhas da Ira acompanhamos não apenas a trajetória dos Joad rumo a sua única esperança, mas o esmiuçar das relações humanas, dos grandes fracassos e das pequenas vitórias, dos imprevistos e da desesperança, e também da força atrelada ao coletivo, àquilo que se faz em companhia de seu próprio povo, àquilo que se faz pelo outro, àquilo que acalenta o acudido e seu benfeitor, provavelmente um dos poucos motivos que ainda os mantêm de pé.

“(…) Onde vamos parar? Acho que não vamos parar em lugar nenhum. Estamos sempre a caminho. Sempre indo. Por que é que ninguém pensa sobre isso? É um movimento que não acaba nunca. O pessoal anda, anda sempre. Nós sabemos por que, e sabemos como. Caminhamos porque somos obrigados a caminhar. É o único motivo por que todos caminham. Porque querem alguma coisa melhor do que têm. E caminhar é a única oportunidade de se obter essa melhoria.” (p. 156) 

As Vinhas da Ira, de John Steinbeck (Eduardo Tognon)
Imagem: Eduardo Tognon

A trajetória não é fácil e as consequências não são tênues. A cada milha percorrida a esperança adquire outro significado. Primeiro é um pneu, depois um pouco de carne e, milhas e milhas além, depois de experimentarem a acidez de uma força controladora brutal, de uma realidade desigual e do pouco caso do Estado, talvez seja um pouco de farinha. Até que, então, ela não é mais esperança, é desalento, é inconformismo, é ira, e essa mistura de percepções traz consequências brutais: há aqueles que perdem a vida na viagem e há aqueles que se perdem em suas próprias elucubrações e decidem tomar outros rumos pelo caminho. Perdem o que mais temiam perder: a dignidade.

Deparar-se com o fracasso e a desilusão são atenuantes irreparáveis para alguns personagens do livro, atenuantes que os separam do “coletivo”, ideia que Steinbeck tanto defende nessa obra. O homem só é verdadeiramente humano se cercado de seus semelhantes, e só consegue assim se manter se estiver com os seus onde eles estiverem. Partindo desse ponto, quando um abandona o coletivo, abandona a si mesmo, não obstante a importância de sua história.

“(…) Todo dia aprendo alguma coisa. Se alguém está em dificuldades, preocupado, na miséria, deve procurar a sua própria gente. Só ela é que pode ajudar, só ela.” (p. 482)

São nos momentos mais difíceis que percebemos o que essa coletividade em meio às dificuldades realmente significa. A essência desse pensamento está às vezes nas pequenas cenas, como nas batatas dos Wilson, na carne de porco salgada pelo reverendo Casy, na tartaruguinha recolhida por Tom (dona de um único capítulo, uma analogia ao êxodo retratado pelo livro), no lençol de Sairy, no guisado da “mãe”. Ah, a mãe…

A “mãe” merece um parágrafo à parte. A figura feminina aqui é colocada em absoluto destaque, e não apenas uma vez, e não apenas por “uma mãe”. A força, a coragem, a determinação e a esperança, ainda que cansadas e surradas, repousam em uma pessoa mais do que em qualquer outra: a “mãe”. Assim como a poeira da estrada, a “mãe” é personagem onipresente, ainda que, em parte das vezes, simplesmente por consequência de atos alheios. É ela quem dá força à família, é ela quem sustenta a pouca expectativa que vai ficando para trás com a travessia. Sem a “mãe”, os Joad não teriam adentrado terras tão longínquas.

“Parecia saber que dependia dela [a mãe] o edifício de sua família; que se ela se mostrasse perturbada ou tomada pelo desespero, todo esse edifício desmoronaria ao menor sopro de ventos adversos.” (p. 91) 

Durante sua ida, os Joad se deparam com quem volta, e as notícias não são nada animadoras do lado de lá. Procurando incessantemente por trabalho, agora apenas para matar a fome, passam dias e noites em acampamentos improvisados pelo governo, se submetem a trabalhos com retornos ínfimos e, como se tudo ainda não fosse degradante o suficiente, aproxima-se o nascimento do bebê de Rosa de Sharon ao mesmo tempo em que Tom tem que se abster de lidar com as injustiças e truculências das forças policiais devido a seu estado de liberdade condicional.

Partindo agora para uma análise mais estrutural, Steinbeck nos entrega um texto genuinamente transparente, não apenas por suas explícitas críticas sociais, econômicas e políticas, mas também porque o autor havia vivido na região retratada, havia testemunhado todos os efeitos dos movimentos econômicos e trabalhistas do período. Isso, consequentemente, deixa sua narrativa mais expressiva, faz com que o leitor seja inserido nessa jornada sem brechas para escape. Sua prosa, às vezes poética, é causa de uma comoção ímpar, não somente nos trechos em que a história dos Joad nos é narrada, mas igualmente nos capítulos em que Steinbeck nos expõe um panorama ainda mais abrangente do contexto de sua narrativa, inserindo personagens paralelos, diálogos capturados aqui e acolá, cenas corriqueiras de uma ou outra família que, assim como os Joad, também tem sua história, também tem sua cruz para carregar.

Os capítulos usados pelo autor para evidenciar o contexto de sua história não ouso chamar de digressivos, porque, por mais que se distanciem momentaneamente do núcleo protagonista, ainda assim compõem o macrocenário dentro do qual todos os personagens estão inseridos, não como meramente uma descrição do meio geográfico, histórico e social, mas como uma forma de acolher todas as outras famílias e histórias, um meio de deixar o leitor mais próximo da tal realidade coletiva.

“Como é que se pode incutir medo num homem que não sente fome apenas em seu estômago, mas também na barriga torturada dos filhos? Não se pode assustar um homem assim… ele já passou por todos os transes.” (p. 297) 

O final da obra talvez seja estranho à primeira vista; é assolador, mas ao mesmo tempo é belo, é sublime. Resume talvez tudo o que Steinbeck tenha focado em seu texto: ao final, ao povo só resta seu povo. Se alguém leu esse livro e não o levou para a vida, se esqueceu de ser humano.

“Nos olhos dos homens reflete-se o fracasso. Nos olhos dos esfaimados cresce a ira. Na alma do povo, as vinhas da ira diluem-se e espraiam-se com ímpeto, amadurecem com ímpeto para a vindima.” (p.446) 

Edição usada para este artigo

As Vinhas da Ira 

Título original: The Grapes of Wrath 

John Steinbeck (trad. Herbert Caro; Ernesto Vinhaes)

ISBN: 978-8577990467 (versão impressa) 

Editora: BestBolso 

Publicação: 2010 (esta edição) / 1939 (original) 

588 páginas

As Vinhas da Ira 

Título original: The Grapes of Wrath

John Steinbeck (trad. Herbert Caro; Ernesto Vinhaes)

ISBN: 978-8577990467 (versão impressa) 

Editora: BestBolso 

Publicação: 2010 (esta edição) / 1939 (original) 

588 páginas

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Eduardo Tognon

Eduardo Tognon

Eduardo Tognon é professor da área de tecnologia, diagramador, um pouco escritor e muito leitor. Adora tecnologia e literatura, e faz com que as duas coisas andem juntas.

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