Além dos Livros

"(...) pois o homem só precisa girar de olhos fechados uma única vez neste mundo para se perder"

Escrito em 1854, Walden (ou A Vida nos Bosques) é um conjunto de ensaios de Henry David Thoreau que esmiuçam sua experiência, iniciada em 1845, de passar dois anos e dois meses vivendo nos bosques, especificamente nos arredores do lago Walden, em Massachusetts, em uma propriedade de seu amigo de longa data, Ralph Waldo Emerson. 

Crítico do estilo de vida industrial estadunidense, Thoreau usa suas experiências para questionar uma série de comportamentos sociais que até hoje geram discussões e controversas. Ao se estabelecer nas proximidades do lago Walden, sua intenção não era apenas de experimentar uma vida mais simplória e de conexão com a natureza, como também de fazer uso de sua solitude para se permitir a elucubração de questões existenciais ora mais amplas, ora bastante acuradas, o que fez de sua obra uma grande referência para o naturalismo.

“(…) Quem quiser aprender a falar todas as línguas e se aclimatar aos costumes de todos os países, viajar para mais longe do que todos os viajantes e se acostumar a todos os climas, e fazer a Esfinge bater a cabeça na pedra, obedece ao preceito do velho filósofo e explora-te a ti mesmo.” (p. 277) 

No início de seus textos, somos apresentados a uma jornada iniciada com a construção, por conta própria, de sua cabana, um pequeno espaço, com pouquíssimos móveis, onde Thoreau passará grande parte de seus dias. Esse episódio serve para que o autor discorra a respeito do que ele considerava um desperdício de espaço, material, tempo e energia quanto ao que é necessário ao ser humano para que possa viver confortavelmente. A partir dessa premissa, diversos outros assuntos serão esmiuçados partindo do pressuposto do desperdício, o que estenderá a narrativa a temas como o excesso de trabalho, a desproporcionalidade entre a alimentação e a energia, a relação prejudicial do homem para com a natureza e o excesso de companhia humana para que o ser humano se sinta pleno, em detrimento de sua própria e consciente companhia. 

Esses dois anos se converteram em um período de grande mudança para Thoreau, que desenvolveu um pensamento muito mais carregado de amabilidade para com a natureza, tanto que, previamente caçador, passou a defender a ideia de uma dieta vegetariana, por exemplo. 

Apesar de ter se isolado na floresta, Thoreau não viveu necessariamente um regime eremita, nem se mostrou misantropo, como é comum que o classifiquem. Durante sua experiência, fez e recebeu visitas diversas, inclusive em grande número. Também ia à cidade para comprar o que lhe era necessário e que não podia construir ou cultivar por conta própria. Suas visitas às vezes demoravam horas, frequentemente devido à curiosidade que outras pessoas alimentavam por seu modo de vida, coisa que ele achava extremamente simples de explicar, mas aparentemente difícil de entender por parte daqueles que estavam acostumados demais com a rotina, as facilidades e preocupações da civilização industrial do século XIX. Ademais, conversava sobre literatura, história, economia e filosofia.

“Eu tinha três cadeiras em minha casa; uma para solidão, duas para amizade, três para sociedade. Quando vinham visitas mais numerosas e inesperadas, só havia a terceira cadeira para todos, mas eles geralmente economizavam espaço ficando de pé.” (p. 125) 

Walden, ou A Vida nos Bosques, de Henry David Thoreau (Eduardo Tognon)
Imagem: Eduardo Tognon

Aliás, segundo sua filosofia, a grande massa vivia um “desespero calado”, demonstrando uma aparente conivência com os percalços de sua vida, amparando-se às vezes ao conformismo de seus destinos, às vezes aos meros momentos de contentamento provindos de um lazer que era, na realidade, apenas uma recompensa por seus “trabalhos desnecessários”. A ociosidade nunca foi vista com bons olhos pela cultura norte-americana, que fomentava a produção acima de qualquer outra ideia. O tempo ocioso permitia que as dúvidas e ideias florescessem, porque deixava a mente mais tranquila e aberta a questões que não fossem meramente as preocupações cotidianas. Era muito mais fácil obter as recompensas do repouso em um ambiente natural, livre de distrações, do que em um ambiente cercado de afazeres e de pessoas apressadas, o que não é, convenhamos, nenhuma novidade. 

Apesar de seus longos rodeios, majoritariamente dedicados a explanações bastante detalhadas de seu meio (como o comportamento do lago, a rotina dos animais e o ciclo das árvores), Walden é uma obra que discute, acima de tudo, a contemplação e o transcendentalismo perante visões ainda mais amplas, que questionam a relação do homem com o ambiente, suas posses relativizadas diante de suas necessidades reais, o embate entre o trabalho e o lazer e, ainda mais importante, o descontrole energético, emocional, intelectual e espiritual nas relações sociais. 

Esse é um dos pontos mais interessantes, porque acaba envolvendo todos os outros de alguma maneira. Thoreau questiona o excesso de trabalho e afazeres, que acaba por nos deixar distantes de um desenvolvimento intelectual e social mais sadio, fazendo com que procuremos em outras pessoas um modo de completar nossa existência, e não apenas de complementá-la. Assim, fazemos das outras pessoas adornos cuja utilidade é nos distrair de um estilo de vida cansativo, infeliz e improdutivo para o intelecto e para o espírito. É por essas e outras discussões que os temas abordados em Walden continuam tão relevantes atualmente.

“Os homens voltam dóceis à noite para casa porque vêm apenas do campo vizinho ou da rua ao lado, onde seu lar ecoa assombrações, e sua vida se ressente de respirar sempre o próprio alento tantas vezes; suas sombras, de manhã e ao anoitecer, chegam mais longe que seus passos cotidianos. Deveríamos voltar para casa sempre de longe, de aventuras, e perigos e descobertas, todos os dias, a cada dia com uma nova experiência e um novo caráter.” (p. 181) 

Defensor de uma solidão voluntária e contemplativa (o que hoje conhecemos como solitude, sua irmã mais poética), Thoreau condenava o excesso de companhia humana quando não necessária – a dependência emocional. Segundo ele, o homem precisava de sua privacidade para que pudesse clarear seu intelecto, descobrir suas forças e fraquezas, entender e ponderar suas dores e esperanças, para que, assim, suas companhias fossem qualitativas, não quantitativas. Para que isso fosse possível, não bastava ao homem um isolamento qualquer, mas sim um isolamento proposital, em contato direto com a natureza – a grande essência de toda a vida, a grande maestra, o elo vital entre o homem e seu propósito, a facilitadora da simplificação das necessidades materiais do homem –, para que ele pudesse, enfim, encontrar sua paz, sua essência e sua independência, características que permeiam todas as odes filosóficas do autor. 

Apesar do ritmo lento, Walden é uma leitura esclarecedora, desafiadora e necessária, que deve ser lida a passos mais demorados, para que o leitor, mais do que absorver, possa também criticar e discorrer sobre o que lhe é proposto pensar. Como disse o próprio Thoreau, sua intenção não era a de mudar o mundo, apenas de que suas observações pudessem ser analisadas e questionadas. Incisivo em suas indagações, o livro continua sendo não apenas um marco para sua época, como também um ponto de partida bastante promissor para discutirmos o estilo de vida contemporâneo, ainda mais complexo que o de seu tempo, mas compartilhando da mesma falta de firmeza de suas raízes.

“Fui morar na floresta porque desejava viver deliberadamente, enfrentar apenas os fatos essenciais da vida, e ver se conseguia aprender o que ela tinha a ensinar, em vez de descobrir só na hora da morte que não tinha vivido.” (p. 81) 

Edição usada para este artigo

Walden (ou A Vida nos Bosques) 

Título original: 🇺🇸 Walden; or, Life in the Woods 

Henry David Thoreau (trad.: Alexandre Barbosa de Souza)

ISBN: 978-8552100133 (versão impressa) 

Editora: Edipro 

Publicação: 2018 (esta edição) / 1854 (original) 

288 páginas

Walden (ou A Vida nos Bosques) 

Título original: 🇺🇸 Walden; or, Life in the Woods 

Henry David Thoreau (trad.: Alexandre Barbosa de Souza)

ISBN: 978-8552100133 (versão impressa) 

Editora: Edipro 

Publicação: 2018 (esta edição) / 1854 (original) 

288 páginas

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Eduardo Tognon

Eduardo Tognon

Eduardo Tognon é professor da área de tecnologia, diagramador, um pouco escritor e muito leitor. Adora tecnologia e literatura, e faz com que as duas coisas andem juntas.

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