“Os Afetos”, de Rodrigo Hasbún
“Os Afetos”, de Rodrigo Hasbún
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"Não é certo que a memória seja um lugar seguro"
Os acontecimentos de Os Afetos se passam durante um período da história boliviana bastante tenso. Falar sobre este livro sem mencionar o contexto histórico é mergulhar em águas muito rasas. Raso, aliás, é um substantivo comumente usado para se referir ao enredo deste livro, no que concordo e discordo simultaneamente. Mas isso é ponto para ser esmiuçado mais adiante.
Rodrigo Hasbún apresenta, nesta pequena novela, a família Ertl, composta pelos pais Hans e Aurelia e pelas filhas Monika, Trixi e Heidi. A família realmente existiu, portanto os personagens são reais, tanto quanto alguns dos acontecimentos narrados no livro. Em tese, é uma obra que mistura realidade com ficção. Aqui, apesar da realidade ser tratada através de um pano de fundo histórico e cultural, ela se envereda por caminhos bastante biográficos. E é justamente por entre essas rotas que Hasbún se dá a liberdade de desenvolver sua narrativa de forma ficcional; as ocorrências, em paralelo àquelas que são realmente autênticas, podem ou não ser verdadeiras.
Os Ertl deixam a Alemanha após o fim da Segunda Guerra em direção à Bolívia, onde se deparam com uma cultura completamente diferente e, em alguns pontos, avessa aos ideais familiares alemães. Hans, o pai, trabalhava na equipe de propaganda nazista de Hitler, no braço cinematográfico, mas Rodrigo não cita esse fato na obra; a grande premissa do livro é abordar as relações afetivas de uma família diante de si mesma e do contexto histórico e político pelo qual a Bolívia passava no momento, entre as décadas de 50 e 60.
A primeira parte de Os Afetos pode nos levar, equivocadamente, a pensar no enredo como uma espécie de aventura, visto que, explorador como era, Hans decide se aventurar pela selva amazônica à procura de uma lendária cidade inca perdida chamada Paitití, levando consigo duas de suas filhas e alguns amigos, para que pudessem registrar a expedição de forma documental. Monika, a filha mais velha, muito parecida com o pai, no aspecto comportamental e aventureiro, ganha, a partir daí, o protagonismo do livro, que mantém consigo até o fim.
A expedição, apesar de servir para mostrar muito de Monika e suas irmãs, não resulta em nada. Todavia, o enredo não parece ter sido podado aqui para Rodrigo continuá-lo em outro broto, como comumente se sustenta. Particularmente, penso que o abandono que o autor deu à expedição por Paitití é uma metáfora à vida da família Ertl. Monika e o pai possuíam certo aspecto inconformista, aventureiro, enquanto Heidi parecia sempre estar no meio termo (os três partiram à procura da tal cidade); já Trixi era mais serena e um tanto quanto racional, ao passo que Aurelia, a mãe, exalava uma postura perturbada e cansada (as duas permaneceram em casa). Esse distanciamento familiar gerado pela aventura de Hans mostra, além da questão física, um distanciamento também afetivo e comportamental. O autor, com essa primeira parte, mostra, nas entrelinhas, como as pessoas podem estar perto e longe umas das outras simultaneamente, no espaço, no afeto e, principalmente, na memória.
“Perguntei se ainda o amava.
Abriu os olhos e me encarou.
Temi que fosse confessar que não, mas disse a mim mesma que compreenderia. Disse a mim mesma que era natural deixar de amar. Disse a mim mesma que na realidade o que era pouco natural era continuar amando. Ou talvez não, talvez eu tenha me dito isso muito tempo depois.” (p. 32)
A segunda parte da obra apresenta as filhas do clã Ertl já adultas. É aqui que os ideais de Monika e seu pai entram em conflito. O inconformismo da filha começa a encontrar escape nos movimentos políticos e sociais ligados a Che Guevara. Ela então começa a se envolver com a guerrilha boliviana, atitude que a colocará diante de dilemas familiares explosivos, principalmente com seu pai. Nessa porção do livro, o contexto histórico é muito importante, mas o autor não o aprofunda, porque, de certa forma, não é sua intenção traçar um panorama político da Bolívia, e sim relatar como as relações familiares dos Ertl foram abaladas por esses acontecimentos e os motivos pelos quais Monika os abraçou. Neste ponto há um confronto existencial entre o propósito individual e o propósito coletivo, tanto é que as irmãs de Monika não conseguem compreender a audácia da irmã, ao passo que ela, por sua vez, não se esforça nem um pouco para ser compreendida.
“Não sentir nada é sentir alguma coisa? Faz anos que você se pergunta isso e agora, enquanto entrega seus documentos, volta a acontecer. Nenhuma emoção, nenhuma lembrança: é a palavra de ordem perante qualquer instância de controle.” (p. 105)
Abordando agora aspectos estéticos, Os Afetos pode parecer, inicialmente, um livro confuso. Eu mesmo me confundi nos primeiros capítulos, pois há um certo ensaio de polifonia: as vozes narrativas são bastante intercaladas, de modo que cada capítulo é narrado por um personagem diferente. Desta espécie de “polifonia em fila indiana” participam não só membros dos Ertl, como também amantes e maridos. Não fica inicialmente nítido quem é o narrador de cada passagem, entretanto, conforme se prossegue a narrativa, o leitor acaba se encontrando.
A superficialidade, ponto mais criticado nesta obra de Hasbún, me pareceu completamente intencional. Ao terminar o livro, é nítida a sensação de melancolia, solidão, vazio, nostalgia e, acima de tudo, uma certa supressão de pertencimento. Esses sentimentos não teriam sido possíveis em uma obra cujos sentimentos, transtornos e impasses pessoais fossem deliberadamente postos à mesa para o leitor. Não, o autor não entrega de mãos dadas nada disso, porque ele deseja que o leitor sinta, deduza, capte a essência dos afetos e da falta deles nas relações entre os personagens. Em nenhum momento Rodrigo nos entrega sensações de melancolia, nostalgia e solidão ostensivamente; elas vêm no remate, depois de invisivelmente infiltradas. E só vêm porque ele mesmo deixou um espaço para isso: o proposital vazio.
“Não é certo que a memória seja um lugar seguro. Nela também as coisas se desfiguram e se perdem. Nela também terminamos nos afastando das pessoas que mais amamos.” (p.120)
Edição usada para este artigo
Os Afetos
Título original: 🇧🇴 Los Afectos
Rodrigo Hasbún (trad. José Geraldo Couto)
ISBN: 978-8580579192 (versão impressa)
Editora: Intrínseca
Publicação: 2016 (esta edição) / 2015 (original)
128 páginas
Os Afetos
Título original: 🇧🇴 Los Afectos
Rodrigo Hasbún (trad. José Geraldo Couto)
ISBN: 978-8580579192 (versão impressa)
Editora: Intrínseca
Publicação: 2016 (esta edição) / 2015 (original)
128 páginas