“Hibisco Roxo”, de Chimamanda Ngozi Adichie
“Hibisco Roxo”, de Chimamanda Ngozi Adichie
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"Eu nunca sorria depois de rezar o rosário em casa. Nenhum de nós sorria."
Mesmo através de uma prosa simples e sensível, a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie faz de Hibisco Roxo uma narração árdua e intensa, que toma lugar em um dos momentos mais importantes da história do país: o instável período após sua independência da Inglaterra, marcado por fortes conflitos civis e sucessivas tentativas de golpes militares. Esse contexto nos ajuda a entender alguns episódios do núcleo político da obra, mas também a compreender as reminiscências – não só políticas, como também culturais, religiosas e econômicas – do período colonial, peça fundamental e força motriz de todo o romance.
Kambili é uma adolescente criada em uma restrita e conversadora família católica, chefiada por Eugene, um homem extremamente autoritário, que faz uso de conceitos fundamentalistas de sua religião para transformar seus familiares em prisioneiros de seus dogmas. Estritamente regrado, o patriarca controla não apenas os horários de seus dois filhos, como também suas companhias, rotinas e visitas. Kambili e Jaja – seu irmão mais velho – são forçados a conceber o mais alto desempenho em seus estudos, sendo fortemente castigados quando não o conseguem.
Em outra ponta está Beatrice, a esposa de Eugene, vítima constante de humilhações psicológicas e violência doméstica. Totalmente submissa às ordens do marido, inicialmente ela sequer é capaz de proteger seus filhos, mas habita em si a consciência do que acontece em sua família, algo que, aos poucos, florescerá de maneira peculiar, ao mesmo tempo em que seus filhos passarão por uma transformação parecida.
“— É estranho estar de volta, okwia? — perguntou Mama.
(…)
Eu quis dizer a Mama que era estranho estar de volta, sim, que nossa sala era vazia demais, que havia um pedaço grande demais de piso de mármore brilhando de tanto Sisi poli-lo e que não ficava embaixo de nenhum móvel. Nosso teto era alto demais. Nossos móveis não tinham vida; as mesas de vidro não mudavam de pele durante o harmattan, o cumprimento dos sofás de couro era de uma frieza úmida, os tapetes persas eram suntuosos demais para passar alguma emoção. Mas eu disse apenas:
— Você limpou a estante.
(…)
Olhei para o olho de Mama. Ele estava abrindo agora, mas devia ter estado completamente fechado no dia anterior, de tão inchado.” (pp. 204-205)
Falar de Hibisco Roxo é falar de personagens complexos, mesmo que estejam imersos em uma narrativa aparentemente despretensiosa. O que jamais pode ser considerado simples são as consequências multifacetadas que resultarão desse enredo, que envolve, dentro do âmbito familiar, um mergulho na história e cultura popular da Nigéria, nas religiões e línguas locais, tudo isso contribuindo para a construção de uma “identidade onisciente”, uma característica que, como já se sugere, permeia todos os núcleos, servindo de alicerce para uma espécie de “epifania velada” que se seguirá nos momentos finais da obra.
A trama é iniciada com Kambili descrevendo um momento de revolta de Jaja à mesa, desafiando as ordens do pai e o rito sagrado que o mesmo promove em casa, justamente em um Domingo de Ramos, data de muita importância dentro da tradição católica. Na realidade, essa revolta não tem fundamentos religiosos; é uma rebeldia de enfrentamento ao pai por seu caráter autoritário e violento, e que usa o fundamentalismo religioso do pai como vetor. Entretanto, essa cena é uma consequência da história que ainda será narrada, adiantando-nos as mudanças significativas pelas quais tanto Jaja quanto Kambili haviam passado.
“(…) Com frequência fazíamos perguntas cujas respostas já sabíamos. Talvez fizéssemos isso para não precisarmos formular as outras perguntas, aquelas cujas respostas não queríamos saber.” (p. 29)
Cronologicamente, o enredo começa quando Eugene permite que os filhos visitem, por alguns minutos, o avô paterno, Papa-Nnukwu, por insistência de Ifeoma – a irmã de Eugene. Por ser considerado pagão, visto que não havia se convertido ao cristianismo e conservava suas crenças locais, Papa-Nnukwu era impedido de ver seus netos pelo próprio filho, tanto que Eugene nem mesmo o visitava, muito menos permitia que ele os visitasse.
Nesse ponto, é relevante destacar que, como resultado da colonização britânica, muitos nigerianos foram influenciados pela catequização dos brancos, processo bastante comum em países coloniais. Foi por conta dessa imposição religiosa que muitos habitantes abandonaram suas crenças e passaram a seguir o cristianismo, o que acabou gerando, em muitos nigerianos, uma espécie de fanatismo religioso, caso esse que se encaixa perfeitamente na história de Eugene. Ajudado – em especial financeiramente – pelos cristãos, ele viu sua vida mudar de modo completo, tornando-se um homem extremamente rico, poderoso e influente, dono de diversas fábricas alimentícias. Um dos motivos pelos quais ele coloca seus rituais acima de quaisquer outros tem a ver, entre outros fatores, com uma espécie de agradecimento aos cristãos que mudaram sua vida. Todavia, como lhe foi ensinado que tudo o que é contra sua religião deve ser amplamente rejeitado, ele rejeita também quaisquer outras pessoas que não compactuem com suas crenças, incluindo seu próprio pai, que não se submeteu ao processo de catequização. Essa intolerância é, desde sempre, repassada a Jaja e Kambili, tornando-se, para os dois, algo completamente natural.
Ademais, é importante ressaltar que o extremismo religioso de Eugene se deu também devido aos abusos psicológicos que ele sofreu durante a “intervenção branca”. Esses abusos, consequentemente, são repetidos em sua família, sendo ele o interventor. Diante disso, compreendemos a naturalidade com a qual Kambili narra as atrocidades vividas dentro de casa, como a cena em que ela e o irmão limpam o sangue da mãe espancada no chão, como se estivessem apenas realizando uma mera faxina; ou como quando Eugene leva Jaja para o hospital depois de ter esfolado a mão do filho por ter errado duas questões na prova de catecismo. Sendo educados pelo método da submissão, com consequentes severas punições físicas e psicológicas, ainda que seja revoltante, a narração passiva de Kambili é apenas fruto da naturalização da barbárie familiar, agravada pela privação que lhes é imposta de viver abertamente a vida e conviver em sociedade.
“Quando Jaja tinha dez anos, ele errara duas perguntas em sua prova de catecismo e não fora o primeiro da turma de primeira comunhão. Papa o levou até o andar de cima da casa e trancou a porta. Jaja, aos prantos, saiu segurando a mão esquerda com a mão direita, e Papa levou-o ao Hospital St. Agnes. Papa chorou também ao carregar Jaja nos braços até o carro, como se ele fosse um bebê. Depois Jaja me contou que Papa evitara bater em sua mão direita, pois era a mão que ele usava para escrever.” (pp. 156-157)
De volta ao enredo, após a visita ao avô, é Ifeoma quem novamente convence Eugene a deixar que os filhos façam uma viagem, dessa vez para sua casa, para que passem um tempo com os primos. É a partir daí que a semente da consciência é plantada. Durante os dias que passam na casa da tia, eles conhecerão uma realidade completamente diferente da sua: Ifeoma e seus filhos – Amaka, Obiora e Chima – são pobres, inclusive passando por dificuldades financeiras que têm consequência, aliás, na rotina alimentar. A casa é simples, a água – não encanada – deve ser usada com cautela e os móveis são precários; no entanto, apesar da aparente dificuldade inicial, Jaja e Kambili aprendem a se adaptar. Aprenderão, no entanto, algo muito mais precioso: a liberdade.
Ifeoma, professora universitária, transita entre o catolicismo e as tradições nativas, educando os filhos de maneira livre, de modo a estimular neles o pensamento crítico, o que causará um impacto cultural gigantesco, aparentemente mais em Kambili do que em Jaja, porque o irmão se desabrochará com muito mais facilidade para acolher essa nova visão de vida. Kambili, entretanto, ainda apresentará certa resistência, ficando chocada com o modo como os primos discutem de igual para igual com a tia, como se sentam à mesa de forma descontraída e como conversam sobre temas que, em sua casa, são proibidos.
“No final das cinco dezenas, antes de rezarmos a salve-rainha, tia Ifeoma rezou por Papa-Nnukwu. Pediu que Deus tocasse Papa-Nnukwu e o curasse como fizera com a sogra do apóstolo Pedro. Pediu que a Virgem Maria rezasse por ele. Pediu que os anjos cuidassem dele.
Meu ‘amém’ veio um pouco atrasado, um pouco surpreso. Quando Papa rezava por Papa-Nnukwu, ele pedia apenas que Deus o convertesse e o salvasse das chamas do inferno.” (p. 161)
A resistência de Kambili ao observar a vida além de suas próprias paredes se dá por um curioso conflito interno, que tenta derrubar uma espécie de idolatria que ela tem pelo pai, o que não a torna de modo algum conivente, mas a deixa desarmada, porque, segundo o pai, todos os castigos – físicos e psicológicos – são etapas diretamente vinculadas à “vontade de Deus”. Impotente diante dessa vontade, ela demora a se questionar. No entanto, três pessoas contribuirão para que esse processo se acelere: a prima Amaka, que a estimula a questionar; o padre Amadi, personagem bastante complexo e uma figura religiosa totalmente diferente daquelas com quem Kambili havia se habituado; e o próprio Jaja, que representa uma espécie de força e inspiração para a irmã, e que passa, então, a se sentir responsável pela transformação a caminho.
A condução da história pela voz de Kambili nos remete a sensações de medo, submissão e silêncio. Diante de seu próprio contexto, a menina é relutante a transformar seus sentimentos em palavras, a dialogar, a denunciar, tanto que as consequências desse novo florescer são repassadas de um modo ainda quase neutro, como no início do romance. É de se esperar que, depois de tantos anos sob o regime do pai, nem ela nem o irmão sejam capazes de se conscientizar repentinamente; a certeza da punição ainda os assombra.
“(…) Fiquei surpresa de ouvi-lo [Papa-Nnukwu] rezando por Papa com a mesma sinceridade com que rezava por si mesmo e por tia Ifeoma.
— Chineke! Abençoe os filhos dos meus filhos. Deixe que seus olhos os acompanhem para longe do mal e perto do bem.
(…)
(…) Ele ainda sorria quando me virei silenciosamente e voltei para o quarto. Eu nunca sorria depois de rezar o rosário em casa. Nenhum de nós sorria.” (p. 179-180)
Quanto ao papel da própria Chimamanda em seu texto, é válido dizer que em momento algum a autora lança críticas a qualquer religião, pensamento dogmático ou preceitos e rituais; as críticas de Hibisco Roxo são concentradas essencialmente na deturpação humana das crenças religiosas para que o homem as use como alicerce para defender sua maquinada posição autoritária, sua violência e seus preconceitos. Aí se encontra Eugene, uma personificação de grande parte dos deuses de dezenas de religiões – aquele que é severo e punitivo, mas que também se compadece e sofre com seus filhos. É um pai bárbaro e descomedido, mas que derrama lágrimas depois de violentar os filhos; é desprezível com seu próprio pai e gente da sua própria terra, mas um grande filantropo e ativista político (é dele um dos pouquíssimos jornais de oposição ao governo e pró-democráticos da Nigéria). É um personagem complexo, e que nos deixa com a seguinte pergunta em mente: teria sido ele diferente se não tivesse cedido a um cego fundamentalismo, fruto de uma “dívida moral” com seus colonizadores?
Hibisco Roxo é um livro necessário, e é interessante ver como tantas discussões podem se desdobrar de uma obra mais ou menos despretensiosa. Mas talvez seja esse mesmo o propósito da autora: não apenas admirar o resultado, mas, sobretudo, observar todo o processo de desabrochamento, assim como acontece com o próprio hibisco roxo, uma planta relativamente rara e que floresce alegremente no jardim de tia Ifeoma. É Jaja quem decide levar uma muda para casa. É no jardim deles que agora florescerá algo novo que eles tiveram a oportunidade de conhecer, ainda que tardiamente. É Jaja quem planta, é Kambili quem descreve e participa do florescer, mas a colheita é para todos.
Edição usada para este artigo
Hibisco Roxo
Título original: 🇳🇬 Purple Hibiscus
Chimamanda Ngozi Adichie (trad.: Julia Romeu)
ISBN: 978-8535918502 (versão impressa)
Editora: Companhia das Letras
Publicação: 2011 (esta edição) / 2003 (original)
324 páginas
Hibisco Roxo
Título original: 🇳🇬 Purple Hibiscus
Chimamanda Ngozi Adichie (trad.: Julia Romeu)
ISBN: 978-8535918502 (versão impressa)
Editora: Companhia das Letras
Publicação: 2011 (esta edição) / 2003 (original)
324 páginas