“Melancolia”, de Jon Fosse
“Melancolia”, de Jon Fosse
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"Uma escuridão que não é morta, e sim que reluz"
Lars Hertervig foi um pintor norueguês que viveu de 1830 a 1902. Ainda que bastante conhecido em sua terra, suas obras são pouco divulgadas mundo afora. Entretanto, tem um admirador assíduo: o escritor – também norueguês – Jon Fosse. Em Melancolia, Fosse utiliza-se de Hertervig para criar um romance majoritariamente ficcional, jamais uma espécie de biografia, como inicialmente chega a parecer. Por mais que alguns personagens e contextos tenham feito parte do passado de Hertervig, eles são usados para a construção de uma narrativa baseada apenas na imaginação de Fosse, dado que não há certeza sobre a vasta maioria dos episódios da obra.
Melancolia foi publicado originalmente em dois volumes: Melancolia I e Melancolia II. O primeiro volume reúne três partes, duas das quais dando protagonismo ao próprio Lars; já o segundo volume apresenta uma visão externa do pintor, observada por uma irmã, que, nesse contexto, é apenas uma personagem fictícia.
Lars descende de uma família pobre de agricultores quakers, nascido na costa oeste da Noruega. Entretanto, quando a família decide se mudar para a cidade, o então menino descobre sua grande paixão: a pintura. Seu talento chama a atenção de alguns comerciantes, que decidem bancar os estudos artísticos de Lars em Düsseldorf, na Alemanha. É justamente ali que o livro é iniciado, na primeira metade dos seus vinte anos, contando um episódio bastante específico: o decorrer de um dia fatídico para Lars, em que ele sofre um colapso mental.
Por mais que Hertervig seja apresentado subitamente nesse contexto, no decorrer da obra nos são apresentados alguns acontecimentos que levaram o pintor a esse episódio, especialmente no segundo volume, quando sua irmã revela suas excentricidades percebidas desde a infância. Todavia, a crise em questão é desencadeada a partir de uma série de causas presentemente contextuais. Hertervig sofre de inseguranças indomáveis, motivo pelo qual é assombrado pelo medo e pela incerteza diante do que está para acontecer naquele dia: uma de suas obras será avaliada por seu professor, Hans Gude, o que faz emergir em si uma sensação de pânico e desalento sem precedentes. Por mais que ora se considere um ótimo pintor, ora se desvanece em meio à fragilidade de suas certezas.
“E nem todos os pintores têm que ser mortos, diz ele.
Mas quase todos têm que ser mortos, não todos, mas quase todos, diz ele.
(…)
Vou matar quase todos os pintores, diz ele.
Eles têm que ser mortos, não sabem pintar e por isso têm que ser mortos, diz ele.”
(p. 346)
Somado a isso, Lars enfrenta ainda diversos delírios incapacitantes, o que produz uma infinidade de pensamentos ininterruptos, entrecortados, encadeando devaneios completamente materializados, como os “tecidos pretos e brancos” que ele frequentemente vê à sua frente, tomando conta de personagens, cenários, sufocando-o muitas vezes. Essa perturbação torna-se ainda mais ampla quando descobrimos que ele alimenta obsessões sexuais por Helene, filha adolescente da Sra. Winckelmann, dona do quarto alugado por Hertervig. Na cabeça do rapaz, ela é sua namorada, ainda que não fique clara a relação entre os dois.
A figura de Helene é de extrema importância no enredo, porque é responsável por grande parte das decisões de Lars, embora não saibamos o quanto de realidade há na presença e no papel da menina na vida do pintor. Helene não é uma alucinação, mas sua presença e atitude são motivos de questionamento por parte do leitor em grande parte das cenas. A trama se torna ainda mais complexa para Hertervig depois que o tio de Helene – que divide as responsabilidades da criação da menina com sua mãe – descobre as intenções de Lars para com sua sobrinha: o rapaz agora tem um prazo para deixar o quarto; é expulso do prédio.
Esse episódio também nos apresenta outro ponto que rodeia os pensamentos de Lars: ele tem quase toda a certeza de que o tio de Helene abusa sexualmente da sobrinha, e muitas vezes cogita a possibilidade de Helene apreciar a situação, tamanha é a confusão de seus pensamentos.
“(…) pois os tecidos querem cobrir meus olhos, os tecidos querem tapar minha boca, tecidos pretos e brancos querem entrar em minha boca e tapá-la, os tecidos vão entrar em minha boca e eu desaparecerei e me tornarei um tecido preto e branco que se move pelo salão e então se vai, desaparecido, eu me tornarei algo que não está mais aqui, isso logo vai acontecer, e agora tenho que colocar o copo de volta à mesa, embora tudo esteja preto e eu ouça todas as vozes e então, em meio a todas essas vozes, está a voz dela, é a voz de Helene e ela fala comigo, mas não consigo ouvir o que ela me diz, mas ela está falando comigo, dizendo algo (…)” (p. 95)
Todas essas concepções tomam lugar simultaneamente na mente de Lars durante o dia de seu colapso: o amor obsessivo por Helene, as desconfianças relacionadas ao tio, o medo do julgamento de seu professor e seus delírios incontroláveis. Dadas as ocasiões preliminares, esse é, portanto, o momento ideal de evocar para esta análise a maior característica dessa obra: sua narrativa com poder incrivelmente hipnótico e ofegante.
O estilo narrativo de Fosse é um dos mais peculiares: quando a história é narrada em primeira pessoa, pelo próprio Lars, há uma repetição de ideias e pensamentos criada com o propósito de transmitir, em linhas, o emaranhado de emoções que toma conta do protagonista, a desordem de sua consciência, a fragilidade melancólica de suas emoções. É uma retratação literária de um fluxo de consciência acelerado, cambaleante, tropeçante. A mente de Lars, esse labirinto, torna-se gráfica, visível e audível, envolvendo o leitor de tal modo que a própria leitura da obra se torna mais rápida, vertiginosa, impaciente, roubando-nos o fôlego. Revela-se como uma hipnose.
As repetições e a intensidade envolvida nelas têm um efeito cumulativo, pois funcionam como pincelada em cima de pincelada, contribuindo para a criação de um retrato psicológico bastante caprichoso na mente do leitor. É a representação, portanto, da própria mente de Hertervig. Mas esse estilo narrativo não aparece apenas nas palavras do próprio pintor; ele está presente, de forma sutil, em outras ocasiões, assunto a ser abordado mais adiante.
“(…) Sou um movimento vazio e esse movimento é você, que não é essa que se foi, que se foi de mim, que não está comigo, essa com quem não posso mais estar. Você, que não quer estar comigo. Você, que só quer estar com outros que não eu. Você, que se foi de mim, agora e para sempre. Sem você talvez o movimento vazio que está em tudo o que pinto se torne excessivamente vazio? Talvez nada mais reste? Talvez então eu morra? Talvez então eu não possa mais pintar? Talvez então eu não possa mais pensar? Talvez só me reste então alternar entre o despertar e o adormecer, entre o estar faminto e o estar saciado? (…) Apesar disso ainda fumarei, sentirei o formigar na pele, verei a fumaça subir em anéis e nuvens, espalhando-se no ar repleto de luz. Estar ali, depois desaparecer.” (p. 107)
Como se não bastassem os acontecimentos até então, Lars decide se dirigir ao Malkasten, famoso bar frequentado especialmente por artistas. É lá que sofre ainda mais: sendo chacota entre seus colegas pintores, é alvo de piadas, enganações e novamente de sua própria mente, que insere Helene em quaisquer contextos do seu dia. Com o ápice de seus devaneios, a primeira parte do primeiro livro é encerrada.
A segunda parte toma início três anos depois, numa véspera de Natal, no manicômio Gaustad, na região de Christiania, local para onde Lars foi levado após os surtos daquele dia fatídico. Ele ainda pensa excessivamente em Helene, mas agora sua admiração também carrega um profundo ódio, ódio esse que também envolve a classe de pintores, para os quais Lars lança um grande desprezo, demonstrado já no início do romance, mas exacerbado nesse momento de confinamento. Parte desse rancor é associada claramente ao fato de que Lars é proibido de pintar durante sua estadia no manicômio.
Na terceira parte somos apresentados a uma história bastante diferente: ambientada em 1991, o autor nos narra um episódio passado numa noite chuvosa em Oslo com o escritor Vidme, que aparentemente teve uma “revelação divina” depois de ter visto, em um museu, uma das obras de Hertervig: De Borgøya. Completamente afetado por algo que ele mesmo denominava inexplicável, ele tenta buscar respostas em um campo diverso a seus costumes: Deus.
“(…) e então aí está Vidme, olhando para um quadro do pintor Lars Hertervig, chamado De Borgøya, e o escritor Vidme ficou parado diante desse quadro em algum momento no final dos anos 1980, o escritor Vidme esteve parado diante de um quadro do pintor Lars Hertervig, e nesse momento e lugar, numa manhã chuvosa em Oslo, experimentou a mais grandiosa sensação de sua vida. Sim, foi isso que pensou. A mais grandiosa sensação experimentada em sua vida. E se lhe pedirem que descreva como foi, ele só poderá dizer que se arrepiou, ficou com os olhos marejados de lágrimas (…)” (p. 263)
O segundo livro talvez seja o mais emocionante, porque nos traz uma perspectiva nova sobre a vida de Hertervig: pela visão de sua irmã – fictícia – Oline. Assim como na primeira parte (e também na segunda parte) do livro um, o segundo narra os acontecimentos de apenas um único dia, no ano de 1902, poucos meses após a morte de Hertervig. Nesse dia específico, Oline, uma senhora já bastante senil e com sérias dificuldades de locomoção e memória de curto prazo, rememora a infância ao lado do irmão e suas peculiaridades. Enquanto tenta dar conta dos afazeres do dia, algumas situações trazem lembranças da época em que Lars era apenas uma criança, e outras de quando, já livre do manicômio, era assistido por uma associação de caridade, passando seus últimos dias em situação de clara pobreza.
Oline lembra-se da solidão costumeira de Lars, de como ele costumava sair de casa e passar horas sozinho, de seus conflitos com o pai, de sua mente já cheia de incertezas, inconformidades e distanciamento social. Era um menino completamente diferente, alheio à agenda das crianças de sua idade, cheio de uma escuridão que vazava pelos seus olhos, mas uma escuridão que também reluzia, como conta sua irmã. Ademais, Oline rememora o dia em que Lars lhe revela as motivações e segredos de seu talento.
“(…) Mas, naquele dia em que segui o Lars, seus olhos castanhos estavam pretos, quando o vi de manhã, havia uma grande escuridão em seus olhos, escuros como pedra preta, escuros como o mais negro dos céus estavam seus olhos, e aquele brilho molhado nos seus olhos, e em torno de seus olhos havia uma agitação, como se por trás de seus olhos houvesse algo pressionando, como se ele estivesse prestes a começar a chorar (…)” (p. 314)
“(…) e eu penso que o Lars é como o mar e o céu, sempre mudando, do claro para o escuro, do branco para o mais preto de todos os pretos, assim é o Lars, exatamente como o mar (…)” (p. 324)
Nesse momento, também entra em cena uma narrativa que muito se assemelha à própria narrativa de Lars, e que mistura primeira e terceira pessoa até mesmo na mesma sentença, causando uma espécie de emaranhamento entre personagem, memória, narrador e autor. Tendo como base a experiência de Vidme, é concebível supor que o autor quis fazer de seu narrador uma entidade acometida pela própria experiência de Lars, por seu efeito na vida de tantas pessoas, inclusive na do próprio Jon Fosse. É compreensível acreditar que o fluxo de pensamento de Oline, ainda que afetado por sua velhice, seja fruto dessa mistura de consequências que a narração de Lars proporciona. É por isso que ela nos parece tão natural, tão verídica, tão imersiva.
Melancolia é uma experiência de leitura singular, provavelmente não muito indicada para aqueles não acostumados a uma prosa poética tão peculiar ou a uma narração vastamente distanciada da “norma”. E jamais isso seria um problema porque, como já antes mencionado, é uma narração baseada nos âmbitos mais profundos da mente de um artista instável, mas cheio de singeleza, envolto por uma escuridão indefinida, mas que carrega sua própria luz. É a expressão gráfica de um lugar desconhecido onde se encontram o belo e o assustador, a arte e a solidão, o talento e a loucura.
“(…) Acho estranho como a imagem lembra tanto a do Lars quando está assim. É sombria do mesmo modo que o Lars fica sombrio. A mesma escuridão. Uma escuridão que não é morta, e sim que reluz, uma reluzente escuridão, de certo modo.” (p. 328)
Edição usada para este artigo
Melancolia
Título original: Melancholia I; Melancholia II
Jon Fosse (trad.: Marcelo Rondinelli)
ISBN: 978-8584190317 (versão impressa)
Editora: Tordesilhas
Publicação: 2015 (esta edição) / 1995 (original)
404 páginas
Melancolia
Título original: Melancholia I; Melancholia II
Jon Fosse (trad.: Marcelo Rondinelli)
ISBN: 978-8584190317 (versão impressa)
Editora: Tordesilhas
Publicação: 2015 (esta edição) / 1995 (original)
404 páginas
Eduardo Tognon
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